domingo, janeiro 29, 2006

O bóia-fria artilheiro





Geraldo da Silva nasceu pobre e desde muito cedo teve que lutar pela sobrevivência. Na sua Álvares Machado, interior paulista (onde nasceu em 25/07/1949), o garoto dava duro no serviço de bóia-fria, contribuindo assim para aumentar um pouco as parcas economias da família.

A exemplo de tantos outros garotos de vida sofrida do interior, nutria o sonho de ser jogador de futebol. Nas folgas, destacava-se nas peladas disputadas com seus colegas de enxada. Não era exatamente um craque: na verdade, tinha parcos recursos técnicos e alguma dificuldade no trato com a bola. Contudo, dentro da área revelava-se um temível artilheiro, alto, exímio cabeceador, forte no corpo-a-corpo e de boa velocidade. Um autêntico camisa 9 de ofício.

Com tais características, chamou a atenção da extinta Prudentina, de Presidente Prudente, seu primeiro clube profissional, com o qual assinou em 1968. Finalmente Geraldão dava adeus ao duro trabalho do campo.

Ficou pouco tempo por lá; a equipe, recém-rebaixada da divisão principal do futebol paulista, estava em decadência e logo fecharia suas portas. Após passagens por outras duas modestas e finadas agremiações (São Bento de Marília e A. A. Epitaciana, de Presidente Epitácio), desembarcou em 1970 no Botafogo de Ribeirão Preto, o tradicional Pantera.

Jogando por uma equipe de maior estrutura e tradição, pôde enfim se firmar e mostrar seu futebol de pouco brilho mas muito suor, raça e, principalmente, gols. Devido a seu jeitão simples e emotivo, logo ganhou o apelido de "Manteiga". E as coisas melhoraram ainda mais com a promoção ao time titular de um jovem grandalhão e magricela, de futebol aparentemente indolente mas que revelava o surgimento de um grande craque brasileiro. Ao contrário de Geraldão, teve uma vida mais abonada e conciliava o futebol com o curso de medicina. Sim, ele mesmo, o Doutor Sócrates.

Apesar das diferenças de estilo, fizeram uma grande dupla. Sócrates era o arco e Geraldão, a flecha. O sucesso de ambos se espalhou rapidamente por todo o Estado. Especialmente a partir de 1974, ano em que Geraldão sagrou-se artilheiro do Paulistão com 23 gols, a maioria deles nascidos dos eficientes passes do Doutor.

Obviamente, ambos passaram a chamar atenção dos clubes grandes do Estado e até do resto do País. Mas Sócrates foi irredutível: preferiu manter-se em Ribeirão até concluir seu curso. E a dupla foi desfeita (momentaneamente) quando Geraldão foi contratado pelo Corinthians, em agosto de 1975.

A Fiel torceu o nariz quando de sua apresentação. Viviam-se os difíceis anos do jejum, àquela altura já totalizando 21 anos sem um mísero título paulista. E os torcedores sabiam das limitações técnicas daquele humilde camisa 9. Se centroavantes consagrados como Flávio, Servílio, Nei e Silva, entre outros, não haviam conseguido pôr fim ao período negro corintiano, o que esperar de um grosso que já passava dos 26 anos?

A desconfiança durou pouco. E nem foi tão difícil: graças a um futebol que consistia basicamente em "ir na bola como se ela fosse um prato de comida", lembrando seus tempos difíceis na roça, e sua grande fome de gols, rapidamente Geraldão conquistou a torcida corintiana, que em sua grande maioria compartilhava com ele a origem humilde.

Eternizou-se na história do clube no ano da graça de 1977. Após três dramáticas partidas decisivas contra o maior time da história da Ponte Preta, o Corinthians finalmente reconquistou o Paulistão graças ao histórico gol do meia Basílio. Geraldão não marcou em nenhuma das três finais, mas contribuiu, e muito, para a conquista: foi o artilheiro da equipe com 23 gols (atrás apenas do são-paulino Serginho, que marcou 32). E outro fato que o deixou para sempre no coração da torcida foram os confrontos contra o mesmo São Paulo: em 1977, foram cinco partidas ao longo do ano somando-se os campeonatos Paulista e Brasileiro, e cinco vitórias corintianas; e em todas elas, um gol do Manteiga.

A lua-de-mel teve um hiato no Paulistão de 1978. O recém-chegado técnico José Teixeira não era um apreciador do estilo desengonçado de Geraldão. Então o artilheiro foi emprestado ao Juventus para a disputa do Estadual, e em seu lugar ficou o polêmico Rui Rei, um jogador mais técnico.

Na Rua Javari, Geraldão fez muitos gols ajudado por um bom time, em que se destacavam o ponta Ataliba, o becão Deodoro e o meia César, entre outros. Naquele mesmo campeonato, o Moleque Travesso fez grandes duelos contra o Corinthians: Geraldo não marcou contra seu ex-time, mas Ataliba deixou o seu em três das quatro partidas, o que contribuiu para que fosse contratado tempos depois. Nas duas últimas, duas vitórias juventinas que ajudaram a impedir o bi alvinegro.

A torcida exigiu seu retorno e Geraldão voltou por cima. Melhor ainda: reeditando a dupla com o parceiro Sócrates, que havia desembarcado no Parque São Jorge no ano anterior. Continuou fazendo seus golzinhos e ajudou na conquista de mais um título, o de 1979 (decidido em fevereiro de 1980), e mais uma vez diante da freguesa Ponte Preta. Contudo, antes das finais foi barrado pelo treinador Jorge Vieira, e assistiu à conquista do banco.

Depois disso, as coisas se complicaram. O Paulistão de 1980 e o Brasileiro de 1981 foram desastrosos para o Timão: craques como Sócrates e Wladimir não conseguiam compensar a fragilidade de jogadores medíocres como o goleiro Solitinho, o zagueiro Djalma e o meia Eli; Amaral, antes titular absoluto da seleção, mergulhou em uma má fase da qual não mais saiu; e antigos ídolos como Zé Maria, Vaguinho e Basílio começavam a sentir o peso da idade.

O último capítulo de Geraldão no Corinthians se deu na noite de 12 de março de 1981, na vexatória goleada de 4 x 1 imposta pelo Santa Cruz em pleno Pacaembu. Foi dispensado pelo clube, assim como Vaguinho, Amaral e Basílio. Novamente tomou o rumo da Rua Javari, mas agora em definitivo. Deixou o Timão com a marca de 278 jogos e 90 gols.

Parecia que era o fim da linha para o camisa 9, àquela altura já contando 32 anos. Mas a salvação de sua carreira veio do Sul do País: de forma surpreendente, o Grêmio foi buscá-lo como reforço para a fase final do Gauchão de 1981. Geraldão serviria como "sombra" para o jovem Baltazar, já um goleador consagrado, mas que desagradava a boa parte da torcida tricolor por sua participação apenas discreta em Gre-Nais.

Geraldão ganhou a posição e começou a fazer seus golzinhos. No hexagonal que decidiu aquele Gauchão, o Internacional chegou a abrir cinco pontos de vantagem e parecia que liqüidaria a fatura com antecedência; contudo, alguns tropeços do Colorado diminuíram a distância, e na última rodada, apenas um ponto separava os rivais. O empate em 1 x 1 deu enfim o título ao Inter, mas Geraldão deixou uma boa impressão.

Voltou para São Paulo e depois de dois meses inativo, recebeu nova proposta de Porto Alegre. Desta vez, o próprio Inter decidiu requisitar seus serviços de goleador, apostando no camisa 9 que quase havia lhe tirado um título certo no ano anterior.

O futebol de Geraldão casou-se perfeitamente com o estilo mais forte e raçudo praticado no Rio Grande do Sul. Não demorou a cair no gosto da torcida colorada, até então ressabiada com sua passagem gremista. E quem ainda alimentava alguma desconfiança se rendeu definitivamente na decisão do título de 1982.

O campeonato novamente foi decidido em um hexagonal final. Mas as finais ficaram mesmo reservadas aos dois Gre-Nais decisivos. No primeiro, em 07 de novembro, o Inter venceu com autoridade no Beira-Rio, por 3 x 1, os três de Geraldão. E na decisão, no dia 28 do mesmo mês, o Olímpico abarrotado agüardava o troco e a conquista do título. Mas o Inter arrebatou a faixa com outra vitória indiscutível, 2 x 0, dois gols... dele mesmo. Em resumo: todos os cinco gols colorados nos dois Gre-Nais decisivos daquele ano foram anotados por Geraldão. De quebra, sagrou-se artilheiro da competição com 20 gols. Não tinha como não virar ídolo depois disso.

Por sinal, Geraldão havia prometido fazer os tais 20 gols no início da competição. E ao chegar ao Gre-Nal final com 18 tentos, prometeu: "vou fazer os dois gols que faltam neles". No final da partida, perdeu talvez o gol mais feito de todo o campeonato. Ao ser entrevistado, justificou-se marotamente que havia prometido 20 gols, e não 21...

Um grupo de samba da capital porto-alegrense até o homenageou com uma música, presente no álbum do tricampeonato gaúcho de 1983:

Gera, gera, gera, Geraldão
É um grande artilheiro
Alegria do povão
Saiu do Parque
Foi para a Rua Javari
Com a sua grande força
Nunca foi de se cair
Foi ao Olímpico, uma desilusão
Chegou ao Beira-Rio para ser o campeão

Ainda ficou no Beira-Rio tempo suficiente para ganhar o título de 83, e mais uma vez como artilheiro. Cumprida sua missão nos Pampas, foi defender o Colorado de Curitiba (que anos depois se fundiria ao Pinheiros para dar origem ao atual Paraná Clube). O "Boca Negra" havia montado uma equipe à base de veteranos como o goleiro Remi, o meia Jaiminho e outros. Mas o projeto ousado fracassou e a equipe teve que se contentar com uma modesta vaga na Taça de Prata do ano seguinte.

Geraldão deixou Curitiba e até o fim da carreira rodou bastante: Mixto-MT (1985), Corinthians de Presidente Prudente (1986/87), Itararé-SP (1987), União Valinhos (1988) e Garça (1989), onde finalmente encerrou sua longa carreira, já quarentão.

Voltou a seu amado Corinthians para assumir o cargo de técnico dos juvenis. Foram quatro anos que renderam boas revelações para o time profissional, como Marques, Silvinho, Cris, Edu, André Santos, Zé Elias e Marcelinho Paulista.

Ainda hoje bate sua bolinha pelo time de Masters do alvinegro, rodando o interior do País junto com ex-companheiros como Biro-Biro, Ataliba e Zé Eduardo. E também ensina futebol a crianças carentes em projeto da Prefeitura de São Paulo.

Mágoas? Apenas da atual administração corintiana. Geraldão lamenta ter sido várias vezes barrado na porta do Parque São Jorge. Tantas vezes que nem mais se interessa em acompanhar os treinos de seu time de coração. Mas a torcida sempre guardará na memória aquele centroavante de técnica tosca, mas de muita raça, entrega ao time e gols decisivos.

Publicado originalmente no fórum Tabelando do 7SportsBrasil (http://www.7sportsbrasil.com/forum) em setembro de 2005

Agradecimentos a Jackson "Dave Mathews" Lucas pela sugestão e colaboração

Foto: Gazeta Esportiva

Um comentário:

Anônimo disse...

Latão, não sabia desse blog. Boa sorte, cara, que você escreve bem demais e traz sempre informações precisas do arco da velha.

Leo